A perícia médica é um dos pilares do processo de análise e concessão dos benefícios por incapacidade no regime geral de previdência social. No entanto, o que deveria funcionar como uma ferramenta técnica de garantia de direitos vem se revelando, na prática, como um dos principais gargalos do sistema previdenciário brasileiro. O resultado é um fenômeno já percebido na rotina de quem atua na área: a judicialização deixou de ser exceção e passou a ser a regra.
A análise pericial realizada pelo INSS, ainda que amparada pela lei 8.213/91 e normativos internos, é frequentemente marcada por brevidade excessiva, ausência de escuta qualificada e desconsideração de laudos médicos, exames complementares e históricos clínicos apresentados pelos segurados. São incontáveis os casos em que segurados com doenças graves e incapacitantes, como insuficiência renal crônica, distúrbios psiquiátricos severos ou sequelas pós-acidente, têm seus pedidos indeferidos sob fundamentos genéricos, como “capaz para o trabalho habitual”, mesmo diante de provas robustas.
Essa prática gera impacto direto não apenas sobre o indivíduo – que permanece sem amparo financeiro em um momento de fragilidade -, mas também sobre o Poder Judiciário, que tem sido cada vez mais demandado a rever tais decisões. A ação judicial, que deveria ser o último recurso para proteção de direitos, tem se tornado a via necessária para a efetivação de benefícios que deveriam ser administrativamente garantidos.
É certo que, em muitos casos, a perícia judicial oferece um alívio. Conduzida por profissionais habilitados e, em tese, imparciais, ela tende a apresentar uma análise mais técnica e detalhada. Contudo, a perícia judicial também está longe de ser infalível. A designação do perito pode demorar meses, comprometendo a subsistência do segurado. Os laudos, por vezes, não dialogam com o conjunto probatório dos autos. E ainda existem casos em que, mesmo diante de pareceres favoráveis, há relutância do juízo em conceder tutela antecipada.
Esse cenário configura uma inversão perversa da lógica de proteção social. O INSS, instituição criada para garantir segurança e dignidade aos trabalhadores brasileiros, acaba se tornando um entrave. A lógica do “indeferimento em massa”, seja por pressão interna, metas quantitativas ou ausência de responsabilização, impõe aos segurados um ônus que deveria ser do Estado: comprovar reiteradamente sua incapacidade diante de um sistema que já os trata com presunção de capacidade.
Além do evidente prejuízo individual, há impactos coletivos. A judicialização massiva desses casos sobrecarrega as varas Federais, compromete a celeridade processual e consome recursos públicos que poderiam ser economizados com uma análise administrativa mais técnica e humanizada.
Estudos realizados por órgãos como o CNJ e o Ipea já demonstraram que os benefícios por incapacidade estão entre os principais responsáveis pelo congestionamento da Justiça Federal. E o mais grave: a maior parte das decisões judiciais reforma os indeferimentos do INSS, revelando uma falha estrutural no modelo de avaliação da autarquia.
Não se trata de atribuir a culpa unicamente aos médicos peritos, muitos dos quais atuam em condições precárias, com prazos exíguos, metas abusivas e insegurança jurídica. O problema é sistêmico. Falta controle de qualidade, capacitação continuada, mecanismos de revisão técnica e, principalmente, uma revalorização da dignidade do segurado como sujeito de direitos e não como obstáculo à gestão de gastos. É preciso repensar o modelo.
O acesso ao benefício por incapacidade não pode depender da sorte de ser avaliado por um bom perito ou de ter um juiz sensível à causa. Trata-se de um direito fundamental assegurado pela CF/88 e pela legislação infraconstitucional. É hora de resgatar o papel do INSS como instrumento de justiça social e não como agente da exclusão.
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