Secretaria confirma que paciente internado na UTI do Hospital de Santa Maria está intoxicado. No carro dele, havia garrafas de bebidas destiladas e energéticos. Polícia suspeita que o rapper Hungria foi contaminado em São Paulo
Por Ana Carolina Alves*, Vitória Torres*, Davi Cruz*, Adriana Bernardes e Carlos Silva
postado em 04/10/2025 04:00
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Os militares encontraram garrafas vazias, tampas, selos de lacre e recipientes já preenchidos com líquidos semelhantes a bebidas alcoólicas – (crédito: Divulgação PMDF)
Subiu para dois o número de brasilienses com suspeita de intoxicação por metanol. O segundo caso foi registrado na manhã de sexta-feira (03/10). Um homem, de 46 anos, deu entrada na UPA de Brazlândia com sintomas compatíveis e foi transferido para a UTI do Hospital de Santa Maria.
A informação foi confirmada ao Correio pela secretária executiva de Assistência à Saúde, Edna Marques, durante entrevista ao programa CB.Agro. “Ele chegou com quadro de insuficiência respiratória. Foi submetido ao exame de gasometria, que deu alteração. Como temos esse cenário, vamos continuar com as investigações e tratar os sintomas”, afirmou.
Edna Marques afirmou que a vítima é paciente da rede e tem um quadro de alcoolismo. No carro no qual ele chegou ao hospital para pedir socorro havia garrafas de bebidas destiladas e energéticos. As garrafas foram recolhidas e o conteúdo será analisado. Os testes demoram, em média, sete a 10 dias para serem concluídos.
Edna também comentou que, no caso do rapper Hungria, internado na UTI do DF Star desde quinta-feira, “está praticamente confirmada” a intoxicação por ingestão de bebida adulterada com metanol.
O Instituto de Criminalística da Polícia Civil concluiu que as bebidas que o cantor ingeriu na quarta-feira, em confraternização com os amigos, não estavam contaminadas com metanol. Entretanto, os peritos encontraram indícios de falsificação entre as garrafas apreendidas durante a fiscalização.
Os médicos que acompanham o caso do cantor acreditam que a contaminação pode ter ocorrido em São Paulo, onde o artista fez show no último domingo. A suspeita é reforçada pelo fato de a casa de shows onde ele se apresentou ter sido interditada pela vigilância sanitária como ação preventiva.
“Ele não fez uso de metanol puro, mas de bebidas adulteradas com etanol e metanol, o que pode retardar a manifestação dos sintomas em até 72 horas. Por isso, acreditamos que a intoxicação pode ter ocorrido em São Paulo, mas só será possível confirmar com as investigações policiais”, afirmou o infectologista Leandro Machado, integrante da equipe que acompanha o cantor.
Apesar da gravidade do caso, os médicos destacam que Hungria apresenta sinais de melhora após os procedimentos de hemodiálise e uso de etanol. “Foram ministrados 180ml de etanol, diluido em um suco de morango, ainda ontem (quinta). Além disso, ele passou por duas sessões de hemodiálise”, ressaltou Leandro.
Bebidas falsas
Na sexta-feira (03/10), uma operação policial descobriu um esquema ilegal de falsificação e adulteração de bebidas alcoólicas na região de Capoeira do Bálsamo, no Paranoá. Um homem de 53 anos foi preso em flagrante pelo GTOp 40, do 20º Batalhão da PMDF.
De acordo com a corporação, ele foi abordado no momento em que chegava à própria residência, em uma motocicleta Honda/CG 160 preta. No imóvel, os militares encontraram uma verdadeira linha de produção clandestina: garrafas vazias, tampas, selos de lacre e recipientes já preenchidos com líquidos semelhantes a bebidas alcoólicas.
Durante o interrogatório, o suspeito confessou que misturava produtos baratos em garrafas de marcas conhecidas e revendia as bebidas adulteradas por cerca de R$ 30 cada. Além do material apreendido, a motocicleta foi recolhida, pois estava com o licenciamento vencido desde 2022.
Segundo a PMDF, o homem possui ficha criminal com registros por homicídio, furto e uso de documento falso. Ele foi encaminhado à 6ª Delegacia de Polícia e responderá por falsificação e adulteração de produtos destinados ao consumo.
Fiscalização
O governador Ibaneis Rocha (MDB) comentou sobre casos de intoxicação por metanol e afirmou que as fiscalizações serão ampliadas neste fim de semana. “Nossas equipes estão mobilizadas, pessoal da saúde, da fiscalização. Vamos aumentar a fiscalização, principalmente, nos fins de semana. A gente espera que casos como esse não voltem a ocorrer.”
Ibaneis lamentou que, mesmo diante do risco à vida, comerciantes priorizem o lucro. “Infelizmente, temos comerciantes que se preocupam muito mais com o lucro fácil do que com a saúde das pessoas. É um processo de conscientização, além de fiscalização. É preciso punir esses maus empresários que buscam esse lucro fácil à custa da saúde das pessoas”, declarou.
“Estudos feitos no Brasil mostram que 40% das bebidas consumidas no país são falsificadas. Temos que trabalhar na fiscalização e as pessoas devem tomar cuidado ao consumir bebidas em locais duvidosos”, completou.
Setor em alerta
Com os recentes episódios, o Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares de Brasília (Sindhobar) emitiu uma nota de alerta ao setor e à população. A entidade afirma estar preocupada com os episódios de mortes e suspeitas de casos, mas acredita que a maior parte dos estabelecimentos formais da capital trabalha com fornecedores confiáveis.
“Temos certeza de que a maioria dos nossos empresários compram suas bebidas diretamente de fornecedores idôneos, com nota fiscal e rastreabilidade. Por isso, acreditamos que os casos registrados não envolvem bares e restaurantes estabelecidos, mas pontos de venda clandestinos ou ilegais”, declarou o presidente do Sindhobar, Jael Antônio da Silva.
O Sindhobar recomenda atenção redobrada de empresários e de consumidores. “É importante verificar lacres, selos, embalagens e a própria garrafa, para garantir que a bebida seja original. Nossa orientação é que as pessoas continuem frequentando os bares e restaurantes de confiança, evitando locais onde os preços são muito baixos e levantam dúvidas sobre a procedência”, acrescentou Silva.
O sindicato orienta os consumidores a se manterem atentos na hora da compra. “A recomendação é clara: procurem bares que já conhecem e confiem. O consumo em locais clandestinos ou de origem duvidosa coloca a saúde em risco e fortalece o mercado ilegal”, destacou o presidente.
Crime organizado
O setor de bebidas alcoólicas está entre os mais prejudicados pelo mercado ilegal, sofrendo perdas bilionárias com falsificação, fraudes, sonegação, contrabando e concorrência desleal. Em 2024, o prejuízo estimado chegou a R$ 86 bilhões, segundo o Anuário da Falsificação, elaborado pela Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF). O estudo não traz recorte específico sobre o Distrito Federal e o Centro-Oeste, já que a região não aparece entre as 10 mais afetadas pela adulteração de produtos.
Um levantamento da Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe) aponta que, entre janeiro e agosto de 2024, foram apreendidas cerca de 185 mil garrafas adulteradas em operações realizadas em parceria com as polícias Federal, Civil e Militar, além dos Procons. De acordo com a legislação, quem é flagrado com bebidas falsificadas pode responder por crime contra o consumidor.
Estabelecimentos do DF anunciaram a suspensão da venda de destilados após os recentes casos de intoxicação por metanol. O Iate Clube de Brasília informou que, “devido ao atual cenário de incertezas, suspende a venda de destilados por prazo indeterminado”, classificando a decisão como “uma medida de segurança em virtude dos últimos casos de intoxicação por metanol após consumo de bebida alcoólica”.
O Minas Brasília Tênis Clube comunicou a suspensão temporária da venda de whisky, de gin e de vodka e informou que “a medida foi adotada diante de casos de bebidas adulteradas noticiadas no país”. “Ainda não há prazo definido para o fim da suspensão, que será reavaliada conforme orientação das autoridades.” O Universal Dinners também anunciou a mesma decisão.
Cinco perguntas para
Stefânia Diniz, oftalmologista e membro do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO)
Como o metanol age no organismo trazendo consequências tão devastadoras, especialmente para a visão e o sistema nervoso central?
O metanol é um tipo de álcool não recreativo. No fígado, ele é convertido em formaldeído e, em seguida, em ácido fórmico, que bloqueia a cadeia respiratória mitocondrial, causando acidose metabólica severa e toxicidade sistêmica. A visão é especialmente afetada, pois as células da retina e do nervo óptico são extremamente sensíveis à hipóxia provocada pelos produtos da metabolização do metanol.
As vítimas costumam apresentar uma ‘falsa melhora’ ou um período assintomático antes de os danos irreversíveis (como a cegueira) se manifestarem. Quanto tempo dura essa janela e qual a importância crítica de iniciar o tratamento, mesmo quando o paciente parece estável?
Após ingerir metanol, a vítima pode ter um período assintomático de até 24 horas, em que parece estável, mas já está produzindo ácido fórmico no organismo. Esse intervalo pode durar até 72 horas e é perigoso, porque os danos podem surgir de forma abrupta e irreversível, como a cegueira. Por isso, o tratamento deve ser iniciado imediatamente, mesmo que o paciente não apresente sintomas evidentes.
Existe uma dose segura de metanol? Ou qualquer quantidade já representa um risco grave? Qual a concentração mínima que, na prática clínica, leva a sequelas permanentes ou à morte, considerando a adulteração em bebidas alcoólicas comuns?
Não existe dose realmente segura de metanol para consumo humano. Pequenas quantidades já podem ser metabolizadas em ácido fórmico e causar danos irreversíveis. Na prática clínica, vemos que ingestões acima de 10 ml de metanol puro (cerca de uma colher de sopa) já podem causar sintomas graves e, a partir de 30 ml, o risco de morte é alto. No caso das bebidas adulteradas, a concentração é imprevisível: mesmo um único copo pode conter doses tóxicas capazes de levar à cegueira ou ao óbito.
O metanol tem antídotos (etanol ou fomepizol). No entanto, mesmo com tratamento, é comum haver sequelas graves. Por que a cegueira é uma sequela tão frequente e quais são as chances de reversão quando o tratamento é tardio?
Sim, o metanol tem antídotos que bloqueiam a formação do ácido fórmico. O problema é que, mesmo com o tratamento, a cegueira ainda é uma sequela comum. Isso acontece porque o nervo óptico e a retina são tecidos extremamente sensíveis à falta de energia celular provocada pelo ácido fórmico. Uma vez instalada a necrose do nervo óptico, a lesão costuma ser irreversível. Quando o tratamento é iniciado tardiamente, as chances de reverter a perda visual são mínimas; por isso, a rapidez no diagnóstico e no início da terapia é decisiva para evitar sequelas permanentes.
Se os sintomas iniciais (dor de cabeça, enjoo) são facilmente confundidos com uma simples ressaca ou embriaguez comum, quais os principais sinais de alerta que a população e os hospitais de menor porte devem procurar para diagnosticar o envenenamento por metanol a tempo?
De fato, os primeiros sintomas da intoxicação por metanol (como dor de cabeça, náusea e tontura) podem se confundir com uma simples ressaca. O sinal de alerta vem quando esses sintomas se agravam e aparecem alterações visuais: visão borrada, manchas escuras, fotofobia ou a sensação de estar enxergando como se fosse uma “neblina”. Outro indício importante é a evolução rápida para confusão mental e dificuldade de respirar, reflexo da acidose metabólica. Hospitais de menor porte devem estar atentos a esse conjunto de sintomas, principalmente quando há suspeita de ingestão de bebida adulterada. Reconhecer cedo e encaminhar imediatamente o paciente pode fazer a diferença para salvar a visão, ou até a vida. No Brasil, qualquer pessoa pode ligar gratuitamente para o Disque-Intoxicação da ANVISA (0800 722 6001) ou procurar o CIATox, que são Centros de Informação e Assistência Toxicológica, que funcionam 24 horas e orientam sobre o que fazer em casos de suspeita de envenenamento.
Protocolo para quem foi contaminado
Todos os pacientes com sintomas de intoxicação por metanol passam por pelo menos três exames: gasometria, que mede o PH do sangue arterial para saber se o paciente está com acidose metabólica; hemograma, para ver como estão as enzimas hepáticas e níveis de TGO, TGP e Gama GT; e um eletrocardiograma, para saber como estão as funções do coração.
O protocolo de tratamento para intoxicação por metanol prevê a utilização de antídotos, como o etanol ou o fomepizol, que bloqueiam a ação da enzima responsável por transformar o metanol em metabólitos altamente tóxicos, como o ácido fórmico. No entanto, enquanto o etanol é usado com frequência em hospitais brasileiros, o fomepizol não possui registro sanitário no país e, portanto, não está disponível no mercado nacional. Para enfrentar essa lacuna, a agência publicou uma chamada pública para identificar fornecedores internacionais do medicamento, em resposta a um pedido emergencial do Ministério da Saúde.
Além dos antídotos, o tratamento inclui medidas de suporte intensivo, como a administração de ácido folínico intravenoso e o uso de bicarbonato de sódio para corrigir a acidose metabólica. Em casos graves, quando há níveis elevados de metanol no sangue, alterações visuais ou neurológicas, insuficiência renal aguda ou acidose severa, a hemodiálise pode ser necessária para remover rapidamente o metanol e seus subprodutos do organismo. O controle de convulsões também faz parte do protocolo, geralmente com benzodiazepínicos.